O ano é 2021. 133 anos após a assinatura da Lei Áurea no Brasil, a coluna republica esse conto em forma de crônica, de autoria desta colunista, como símbolo de uma luta constante pelo fim das atrocidades de outrora, mas que teimam em se repetir.
Acordei, mas ainda era noite. O silêncio da escuridão gritava o que estava por vir. Seria mais um dia árduo sustentado em minhas mãos negras calejadas.
Depressa - sussurrou a velha, puxando-me pelo braço até a Casa Grande. O sinhozinho acordou com fome! – completou, enquanto ouvíamos o choro da criança branca em seu quarto. Rapidamente, peguei-o em meus braços e dei-lhe o peito. Já não tinha mais leite como antes. Haviam se passado dez meses desde que senti meu preto sugando-me a seiva materna pela última vez. O sinhozinho tem muita fome e eu secava dia após dia.
O que farei depois? O que farei quando o leite secar de vez? Talvez haja lugar na cozinha com as pretas! – pensei alto para velha, numa súplica disfarçada. Tu és nova, tem braços fortes, vão te botar na colheita, certamente. – respondeu-me num tom de desesperança, pois sabíamos o destino das negras jovens.
O sinhozinho dormia novamente e era-me encarregado de preparar o banho e o café da senhora. Sem demoras, cuidei de meus afazeres. Enquanto o perfume do café colhido da fazenda inebriava aquele cômodo lúgubre, o corpo me lembrava de pôr algo para dentro após tantas horas desperto. Mas as obrigações de negra não haviam terminado.
Quando, enfim, o sol se pôs, após mamadas, fraldas, risadas e lágrimas, podia fugir para ver meu preto, meu pequeno grão de café. Agarrava-me pelo peito, ansiando uma gota do amor que não lhe sobrara. Fiz-lhe garapa para adoçar os lábios enquanto implorava aos prantos a seiva vital que já não carregava. Fora-lhe ceifada pelo branco. E desde miúdo já aprendia o poder do branco.
A lua afastava a escuridão no céu em sua forma mais plena. Branca da cor do meu algoz, mas seu brilho acalentava as noites. Os negros acendiam a fogueira no terreiro para celebrar de júbilo a chegada daquele ser celestial. Era para mim um torrão de açúcar, bem lembrando o estômago, apesar de nunca conhecer seu sabor, mergulhava no café da senhora todas as manhãs.
Ouviram? – o preto velho alertou. Não ouvíamos nada além do trepidar e estalar da madeira no fogo. Mas a sabedoria do ancião conhecia bem aquele som. Eram passos apressados de muitos pés carregados de foices que se aproximavam. O sinhozinho pai ordenara. Buscavam a próxima de seu deleite. Meu coração palpitava como os tambores acelerados do terreiro.
Você! – apontava-me o dedo o capataz. O sinhozinho está esperando! – esbravejou. Muitas negras já tinham sido escolhidas. Umas diziam gostar por terem o privilégio de provar o café e o açúcar, enquanto outras só recordavam as dores das bestialidades impostas. A verdade é que era uma loteria: se o sinhozinho se agradasse, ele concedia pedidos e realizava pequenos desejos. Mas se não tivesse competência para fazer-lhe sorrir de gozo, o destino aguardar-lhe-ia na coxia com doze capatazes famintos.
O mato cortava-me o rosto, enquanto corria para longe. Peguem-na! – um deles ordenou. Meus pés descalços já não se importavam com pedras no caminho e lembravam-me dos dias em que corri criança pelo cafezal, escondendo-me nas brincadeiras pueris. Alcançava-me o porrete à cabeça.
Desperto. Desligo o ar condicionado e escondo-me sob as cobertas. O sol esforçava-se, espremido entre as frechas da janela para espiar-me. Era um sonho, respirava ao alívio. O peso nas pernas e braços contradiziam, suntuosamente, que não. Malgrado os 133 anos transcorridos desde o último 13 de maio de 1888, não havia fim. Quimera!
A vedação à escravidão compõe o rol das jus cogens, dentro do cenário do Direito Internacional, traduzindo-se como norma imperativa e inquebrantável. O mundo concordou em derrogar essa abominável prática, sendo o Brasil um dos últimos países a se comprometer legalmente com o fim dessa barbárie.
Entretanto, mais de um século depois, não é possível afirmar que o fim se concretizou. Essa cultura inadmissível ainda é exercida em diversos lugares, apesar de toda luta pelos Direitos Humanos, o homem ainda mantém outro ser humano como sua propriedade e mercadoria. Nisso, os animais tornam-se mais “humanos”, palavra que aqui empregada perde todo sentido.
O trabalho escravo é uma grave violação de direitos humanos. A Organização das Nações Unidas - ONU acompanhou uma das primeiras normas sobre o tema, editada em 1930, pela Organização Internacional do Trabalho - OIT, uma de suas agências especializadas, efetivamente reconhecida somente em 1946. Por meio da Convenção nº 29, os países membros assumiram o compromisso de “abolir a utilização do trabalho forçado ou obrigatório, em todas as suas formas, no mais breve espaço de tempo possível”. Já em 1948, ao promulgar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a ONU estabeleceu, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos e nela proibiu a escravidão (art. 4o), bem como a sujeição de qualquer pessoa à tortura, penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes (art. 5º).
Em 1966, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) estabeleceu a proibição do trabalho escravo, em seu artigo 8°. O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC, arts. 6º e 7º), a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW, arts. 6º e 11º), o Protocolo Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Criança, (art. 3º), o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (art. 7.2.c), a Convenção sobre os Direitos da Criança (CRC, art. 32), a Convenção sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das Suas Famílias (art. 11º) e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD, art. 27.2) também corroboram no mesmo sentido.
Em 1998, fora criada a Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho e seu Seguimento, consolidando o compromisso de respeitar, promover e aplicar de boa-fé os princípios fundamentais e direitos no trabalho, dentre os quais está elencada a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório. Já recente, em 2014, nascia um Protocolo e uma Recomendação (n° 203) que complementam a Convenção n° 29 da OIT, fornecendo orientações específicas sobre medidas efetivas a serem tomadas pelos Estados Membros para eliminar todas as formas de trabalho forçado, proteger vítimas e assegurar-lhes acesso à justiça e compensação.
Corroborando Castro Alves, em Navio Negreiro:
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer...
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!..
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Nunca mais, escravidão!
Crônica de Nayara Figueiredo de Negreiros